segunda-feira, março 31, 2008

Os prazeres superiores

Raparigas à janela, Murillo, Sevilha, 1618/1682


De dois prazeres, se houver um ao qual todos ou quase todos aqueles que tiveram a experiência de ambos derem uma preferência decidida, independentemente de sentirem qualquer obrigação moral para o preferir, então será esse o prazer mais desejável. Se um dos dois for colocado, por aqueles que estão competentemente familiarizados com ambos, tão acima do outro que eles o preferem mesmo sabendo que é acompanhado de um maior descontentamento, e se não abdicarem dele por qualquer quantidade do outro prazer acessível à sua natureza, então teremos razão para atribuir ao deleite preferido uma superioridade em qualidade que ultrapassa de tal modo a quantidade que esta se torna, por comparação, pouco importante.


Ora, é um facto inquestionável que aqueles que estão igualmente familiarizados com ambos, e que são igualmente capazes de os apreciar e de se deleitar com eles, dão uma preferência muitíssimo marcada ao modo de existência que emprega as suas faculdades superiores. Poucas criaturas humanas consentiriam ser transformadas em qualquer dos animais inferiores perante a promessa da plena fruição dos prazeres de uma besta, nenhum ser humano inteligente consentiria tornar-se tolo, nenhuma pessoa instruída se tornaria ignorante, nenhuma pessoa de sentimento e consciência se tornaria egoísta e vil, mesmo que a persuadissem de que o tolo, o asno e o velhaco estão mais satisfeitos com a sua sorte do que ela com a sua. (...) Um ser com faculdades superiores precisa de mais para ser feliz, provavelmente é capaz de um sofrimento mais agudo e certamente é-lhe vulnerável em mais aspectos. Mas, apesar destas desvantagens, não pode nunca desejar realmente afundar-se naquilo que se lhe afigura como um nível de existência inferior. (...) Quem supõe que esta preferência implica um sacrifício da felicidade - que, em igualdade de circunstâncias, o ser superior não é mais feliz que o ser inferior - confunde as ideias muito diferentes de felicidade e de contentamento. É indiscutível que um ser cujas capacidades de deleite sejam baixas tem uma probabilidade maior de as satisfazer completamente, e que um ser amplamente dotado sentirá sempre que, da forma como o mundo é constituído, qualquer felicidade que possa procurar é imperfeita. Mas pode aprender a suportar as suas imperfeições, se de todo forem suportáveis, e estas não o farão invejar o ser que, na verdade, está inconsciente das imperfeições, mas apenas porque não sente de modo nenhum o bem que essa imperfeições qualificam. É melhor um ser humano insatisfeito do que um porco satisfeito; é melhor Sócrates insatisfeito do que um tolo satisfeito. E se o tolo ou o porco t~em uma opinião diferente é porque só conhecem o seu próprio lado da questão. A outra parte da comparação conhece ambos os lados.




John Stuart Mill, Utilitarismo, Porto Editora, Porto, 2005





Tradução de Pedro Galvão

quarta-feira, março 12, 2008

Que Ética?


Edgar Degas, Ballet Clássico, 1881

Seria importante reflectir sobre a forma como Kant concebe a moral. Se à partida o excessivo formalismo parece ser impossível de pôr em prática, como se obedecer ao dever fosse algo que não oferece motivos e, sem motivos, porque devemos agir? Por outro lado pode surgir como uma possibilidade de pensar a moralidade tal como ela deveria ser, como sistema ideal.
Para Kant, a motivação considerada o motor da acção, está ligada ao sentimento e, como tal, não é fiável, porque o sentimento e os interesses mudam ao longo do tempo e de estado de espírito. Não é possível fazer uma lei moral baseada em qualquer tipo de sentimento porque o que caracteriza a lei é a sua universalidade e estabilidade. A "motivação para" pertence ao mundo material e animal e, como tal, não é moral, caracterizando-se a acção moral como aquela que tem um fim em si mesma, pura obediência à representação da lei em nós . Agir moralmente não implica estar motivado para agir bem, ser correcto através da acção correcta, não implica nenhum fim subjectivo mas procurar que a nossa acção corresponda a uma máxima universalizável. Como podemos saber que a máxima é universalizável? Isto é: Para uma acção como "mentir para salvar uma pessoa inocente", a máxima "devemos sempre mentir para salvar uma pessoa inocente" é universalizável, todavia vai contra outra máxima que diz: "Não devemos mentir", e estas máximas são independentes das circunstâncias, logo não podem alterar-se, se "mentirmos para", o fim da nossa acção é salvar um inocente, e portanto não é moral visto que aqui há um motivo que se coloca para lá da simples obediência à lei que diz" Não deves mentir" . Isto não nos parece correcto tão pouco humano, diriamos que há uma indiferença perante as consequências da acção, indiferença essa que torna a acção moral muitas vezes uma acção incorrecta do ponto de vista das consequências nefastas que pode ter para o outro. Num mundo ideal onde ninguém perseguisse inocentes, a Ética de Kant faria todo o sentido, mas no mundo real, a adaptação dos princípios aos fins é, muitas vezes necessária.
Parece pois, possível de ser pensado mas inconcebível do ponto de vista do agir real. Manifestar uma boa vontade, uma vontade absolutamente desligada dos interesses é, na prática um desinteresse pelo destino dos outros que dela dependem, embora a máxima dos fins imponha que os devemos ver sempre como fins e nunca como simples meios. Mas Kant reitera a sua ideia de que o mundo Ético não existe, não só porque os homens não têm boa vontade como a lei de que são legisladores é "a priori" isto é pensada, independentemente do mundo da experiência concreta.Valerá essa forma como padrão ou estará tão desligada da realidade humana,como um idealismo puro, consistente na forma mas independente da realidade e impraticável? Qual será o propósito da Ética e da Moral? Construir um sistema coerente de formas ou reflectir sobre a realidade vivencial?


Helena Serrão

quinta-feira, março 06, 2008

Factos do senso comum.

Corot, Paisagem


Às vezes chamar "bom" a alguém não quer dizer nada de bom: a tal ponto que costuma dizer-se coisas como esta - "O Fulano coitado, é muito bom." O poeta espanhol António Machado estava consciente desta ambiguidade e na sua autobiografia poética escreveu: " Sou bom no bom sentido da palavra..." Sabia que, com frequência, o facto de se chamar a um indíviduo "bom" se refere apenas à sua docilidade, à sua tendência para não contrariar os outros e para não causar problemas, para ser ele sempre a virar os discos enquanto os outros dançam, e assim por diante.

Para alguns ser bom significará ser resignado e paciente, mas outros chamarão boa à pessoa empreendedora, original, que não se encolhe quando chega a hora de dizer o que pensa ainda que isso possa ferir alguém. Em países como a África do Sul, por exemplo, alguns considerarão bom o negro que não causa problemas e se conforma com o apartheid, ao passo que outros só chamarão bons aos apaniguados de Nelson Mandela. E sabes porque é que não é simples dizer quando é que um ser humano é "bom" e quando é que não o é? Porque não sabemos para que servem os seres humanos. Um futebolista serve para jogar futebol de uma maneira que ajude a sua equipa a ganhar e meta golos ao adversário; uma moto serve para nos deslocarmos com velocidade, estabilidade, resistência...Sabemos quando é que um especialista nalguma coisa ou instrumento funcionam como deve ser porque temos uma ideia do serviço que eles devem prestar, uma ideia do que se espera deles. Mas, se considerarmos o ser humano em geral, a coisa complica-se: dos seres humanos exige-se umas vezes resignação e outras vezes rebeldia, umas vezes iniciativa e outras obediência, umas vezes generosidade e outras vezes previsão do futuro, etc. Não é fácil determinar sequer uma qualquer virtude: o facto de um futebolista meter golo na baliza contrária sem cometer falta é sempre uma coisa boa, mas dizer a verdade poderá não o ser. Chamarias "bom" ao que por crueldade diz ao moribundo que vai morrer ou ao que denuncia ao assassino o lugar onde se esconde a vítima que ele pretende matar?

Savater, Ética para um jovem, Presença, 1995