sábado, maio 24, 2008

Consequências do determinismo

[O determinismo] poderá, na verdade, ser uma doutrina verdadeira. Mas se fosse verdadeira, e se começássemos a levá-la a sério, então, de facto, as mudanças em toda a nossa linguagem, na terminologia moral, nas nossas atitudes em relação aos outros, na nossa visão da história, da sociedade, e de tudo o resto, seriam tão profundas que é até difícil imaginar onde isso levaria. Os conceitos de louvor e censura, inocência e culpa e de responsabilidade individual, dos quais partimos, são apenas uma pequena parte da estrutura que entraria em colapso e desapareceria. As nossas palavras – a nossa maneira de falar e de pensar – seria literalmente transformada de maneira inimaginável. Defendo que as noções de escolha, de responsabilidade, de liberdade, estão tão profundamente entranhadas na nossa maneira de pensar que a nossa nova vida como criaturas de um mundo onde estes conceitos estivessem realmente ausentes pode ser apenas concebida com muita dificuldade.
Isaiah Berlin, ‘Historical Inevitability’ in Four Concepts of Liberty (Oxford, 1969). Trad. Carlos Marques.

Razão e Filosofia

Edward Hooper, Farol em Two lights, 1953, EUA

Não é universalmente reconhecido que muito do que ocupa a filosofia envolve raciocínio. Muitas pessoas têm a ideia de que a filosofia é essencialmente acerca de ideias ou teorias sobre a natureza do mundo e do nosso lugar nele. Os filósofos caminham para a verdade com tais ideias e teorias, mas na maior parte dos casos o poder e alcance destas resulta de terem sido derivadas de uma argumentação racional a partir de premissas aceitáveis. É claro que muitas outras regiões da vida humana também envolvem habitualmente raciocínio e pode por vezes ser impossível traçar uma linha divisória clara para as distinguir da filosofia. (De facto, a própria questão de saber se é ou não possível fazê-lo é matéria de acalorado debate filosófico!)
As ciências naturais e sociais, por exemplo, são áreas de investigação racional muitas vezes próximas das fronteiras da filosofia (especialmente nos estudos da consciência, na física teórica e na antropologia). Porém, as teorias que compõem estas ciências são geralmente determinadas por certos processos formais de experimentação e reflexão com os quais a filosofia tem pouca relação. O pensamento religioso também atrai por vezes a racionalidade e partilha frequentemente uma fronteira em disputa com a filosofia. Mas enquanto o pensamento religioso está intrinsecamente ligado ao divino, ao sagrado ou ao transcendente – porventura através de uma revelação, artigo de fé ou prática religiosa – a filosofia, por contraste, não está geralmente ligada a essas dimensões.
Sem dúvida que o trabalho de certas figuras proeminentes da tradição filosófica ocidental evidenciam claramente dimensões não racionais ou mesmo anti-racionais (por exemplo, Heraclito, Kierkegaard, Nietzsche, Heidegger e Derrida). Além disso, muitos desejam incluir o trabalho de pensadores asiáticos (confucionistas, taoístas, xintoístas), africanos, aborígenes e americanos nativos, sob a rubrica filosofia, mesmo se estes parecem fazer pouco uso de argumentação.
Contudo, mesmo o trabalho de pensadores que fogem ao padrão envolve, apesar das intenções destes, opiniões racionalmente justificadas e formas subtis de argumentação. Em muitos casos, o raciocínio permanence em cena, pelo menos como uma força a ter em conta.
A filosofia, portanto, não é a única área para a qual a racionalidade é importante e nem tudo o que tem o nome filosofia é argumentativo. Mas é certamente seguro dizer que não se pode dominar minimamente o corpo do pensamento filosófico sem aprender a usar as ferramentas da razão.

Julian Baggini & Peter S. Fosl, The Philosopher's Toolkit. A Compendium of Philosophical Concepts and Methods, Oxford, 2003. Trad. Carlos Marques.

Que significa 'cultura'?


Em meados do século dezoito o conceito de cultura surgiu da cabeça de Johann Gottfried Herder preparado para as batalhas em que tem estado envolvido desde então. Kultur, para Herder, é o sangue vital de um povo, a corrente de energia moral que mantém a sociedade intacta. Zivilisation, em contraste, é a sofisticação nas maneiras e o saber-fazer técnico e legal. As nações podem partilhar uma civilização, mas serão sempre distintas na sua cultura, uma vez que a cultura define o que elas são.
Esta ideia desenvolve-se em duas direcções. Os românticos alemães (Schelling, Fichte, Hegel, Holderlin) concebem a cultura no sentido de Herder, como a essência que define uma nação, uma força espiritual comum que se manifesta em todos os costumes, crenças e práticas de um povo. A cultura, sustentam, molda a língua, a arte, a religião e a história e deixa a sua marca no mais pequeno dos eventos. Nenhum membro da sociedade, por pouca formação que tenha está dela arredado, pois cultura e pertença social são a mesma ideia.
Outros, mais clássicos do que românticos, interpretam a palavra no seu significado latino. Para Wilhelm von Humboldt, pai fundador da universidade moderna, cultura não significa desenvolvimento espontâneo, mas a instrução. Nem todos a possuem, visto que nem todos possuem o tempo livre, a inclinação ou a capacidade necessárias para aprender. Além disso, entre pessoas cultas, algumas são mais cultas do que outras. O propósito da universidade é preservar e expandir a herança cultural e transmiti-la à geração seguinte.
As duas ideias ainda se encontram entre nós. Os primeiros antropólogos adoptaram a concepção de Herder e escreveram sobre a cultura enquanto práticas e crenças que formam a identidade própria de uma tribo. Qualquer membro da tribo possui a cultura, visto que é isso que a pertença requer. Mathew Arnold e os críticos literários que ele influenciou (incluindo Eliot, Leavis e Pound) seguiram Humboldt, entendendo a cultura como uma propriedade de uma elite, uma postura que envolve intelecto e estudo.

Roger Scruton, Modern Culture, London, New York, 1998.
Trad. Carlos Marques.

sexta-feira, maio 23, 2008

Arte como fuga

Hieronymus Bosch, O jardim das Delícias, 1504


Fomos assim conduzidos a abordar a análise da produção literária e artística em geral. Reconhecemos que o reino da imaginação era uma "reserva" organizada aquando da passagem dolorosamente experimentada do princípio do prazer ao princípio da realidade, a fim de permitir um substituto à satisfação instintiva a que era preciso renunciar na vida real.


O artista retira-se para longe de uma realidade que o não satisfaz, para um mundo imaginário, mas (...) pretende encontrar um caminho de regresso e reafirmar-se na realidade. As suas criações, as suas obras de arte, são satisfações imaginárias de desejos inconscientes, tal como sonhos, com os quais aliás tinham em comum a característica de serem um compromisso, pois também elas deveriam evitar um conflito aberto com as potências de recalcamento.


Freud, A minha vida e a psicologia

Tradução de Alberto Antunes

Apenas num único campo da nossa civilização foi mantida a omnipotência de pensamentos e esse campo é o da arte. Acontece que na arte um homem consumido por desejos efectua algo que se assemelha à realização desses desejos e fá-lo com um sentido lúdico que produz efeitos emocionais – graças à ilusão artística – como se fosse algo real. As pessoas falam com justiça da ‘magia da arte’ e comparam os artistas com mágicos. Mas a comparação talvez seja mais significativa do que pretende ser. Não pode haver dúvida de que a arte não começou como arte por amor à arte. Ela funcionou originalmente ao serviço de impulsos que estão hoje, em sua maior parte, extintos. E entre eles, podemos suspeitar da presença de muitos instintos mágicos.

Freud, Totem e tabu, pag 100

segunda-feira, maio 12, 2008

4 RAZÕES PARA ESCREVER


Tirando a necessidade de ganhar a vida, penso que existem quatro grandes motivos para escrever, pelo menos para escrever em prosa. Eles existem em diferentes graus de escritor para escritor e as suas proporções relativas variam em cada escritor de ocasião para ocasião, consoante a atmosfera em que ele vive. Eles são:
1. Puro egoísmo: o desejo de parecer inteligente, de que falem de si, de ser recordado depois de morrer, de se vingar daqueles que fizeram pouco de si na infância, etc., etc. É escusado fingir-se que isto não é um motivo e um motivo forte. Os escritores partilham estas características com os cientistas, artistas, políticos, juristas, soldados, homens de negócios com sucesso – em suma, com o toda a nata da humanidade. A grande massa dos seres humanos não é intensamente egoísta. Por volta dos trinta anos abandonam a ambição individual – na verdade, em muitos casos abandonam por completo mesmo o sentido de serem indivíduos, vivendo principalmente para os outros ou sendo simplesmente sufocados pelo trabalho. Mas há uma minoria de pessoas talentosas e voluntariosas que estão determinadas a viver a sua vida até ao fim, pertencendo os escritores a essa categoria. Diga-se que os escritores sérios são, tudo somado, mais vaidosos e centrados em si mesmos que os jornalistas, embora menos interessados em dinheiro.
2. Entusiasmo estético: a percepção da beleza no mundo exterior ou, em alternativa, nas palavras e na sua melhor combinação; o prazer do impacte de um som sobre outro, da firmeza da boa prosa ou do ritmo de uma boa história; o desejo de partilhar uma experiência que julgamos valiosa e que não se deve perder. O motivo estético é muito ténue em muitos escritores, mas até um escritor de panfletos ou de textos escolares tem mais ligação a certas palavras e há frases que o atraem por razões não utilitárias; pode até ser sensível a aspectos tipográficos, como a largura das margens, etc. Nenhum livro acima do nível do guia dos comboios é verdadeiramente indiferente a considerações estéticas.
3. Impulso histórico: o desejo de ver as coisas como elas são e de encontrar factos verdadeiros, armazenando-os para o uso da posteridade.
4. Propósito político: usando a palavra ‘político’ no sentido mais lato possível: o desejo de conduzir o mundo para uma certa direcção, de alterar a ideia das outras pessoas a respeito do tipo de sociedade pela qual se devem esforçar. Uma vez mais, nenhum livro é genuinamente livre de uma linha política. A opinião de que a arte nada tem a ver com a política revela, ela própria, uma atitude política.

George Orwell, "Porque escrevo". Tradução de Carlos Marques.

quinta-feira, maio 08, 2008

A utilidade de um padrão de gosto.


Claude Monet, Jardim em Giverny,1902



O mesmo Homero que agradava a Atenas e Roma há dois mil anos é ainda admirado em Paris e Londres. Todas as diferenças de clima, governo, religião e linguagem foram incapazes de obscurecer a sua glória. A autoridade ou o preconceito são capazes de dar uma voga temporária a um mau poeta ou orador, mas a sua reputação jamais poderá ser duradoura ou geral. Quando as suas composições forem examinadas pela posteridade ou por estrangeiros, o encanto será dissipado e os seus defeitos aparecerão como realmente são. Pelo contrário, no caso de um verdadeiro génio, quanto mais as suas obras durarem mais amplo será o seu sucesso, e mais sincera a admiração que despertam. Dentro de um círculo restrito há demasiado lugar para a inveja e o ciúme, e até a familiaridade com a pessoa pode diminuir o aplauso devido às suas obras. Quando desaparecerem estes obstáculos, as belezas que naturalmente estão destinadas a provocar sentimentos agradáveis manifestam naturalmente a sua energia. E sempre, enquanto o mundo durar, conservarão a sua autoridade sobre os espíritos humanos.



Vemos portanto que, no meio de toda a variedade e capricho do gosto, há certos princípios gerais de aprovação ou de censura, cuja influência um olhar cuidadoso pode verificar em todas as operações do espírito. Há determinadas formas ou qualidades que, devido à estrutura original da constituição interna do espírito, estão destinadas a agradar e outras a desagradar. Se em algum caso particular elas deixam de ter efeito, é devido a qualquer deficiência ou imperfeição do órgão. Um homem cheio de febre não pretende que o seu paladar seja capaz de distinguir os sabores, nem outro com um ataque de icterícia teria a pretensão de pronunciar um veredicto a respeito das cores. Para todas as criaturas há um estado de saúde e um estado de enfermidade, e só do primeiro podemos esperar receber um verdadeiro padrão do gosto e do sentimento. Se, no estado saudável do órgão, se verificar uma uniformidade completa ou considerável das opiniões dos homens, podemos daí derivar uma ideia da perfeita beleza, da mesma maneira que a aparência dos objectos à luz do dia, aos olhos das pessoas saudáveis, é chamada a sua cor verdadeira e real mesmo que se reconheça que a cor é simplesmente um fantasma dos sentidos.



Apesar de todos os nossos esforços para determinar um padrão de gosto e reconciliar as opiniões discordantes das pessoas, permanecem ainda duas fontes de variação que, todavia, não são suficientes para confundir as fronteiras da beleza e da deformidade, mas que servem frequentemente para produzir diferenças de grau na nossa aprovação ou censura. Uma são os diferentes estados de espírito dos homens particulares; a outra são os costumes e opiniões particulares da nossa época e país. Os princípios gerais de gosto são uniformes na natureza humana: onde os juízos dos homens variam, algum defeito ou perversão nas faculdades pode geralmente ser observado. Estes resultam do preconceito ou da falta de prática ou da falta de delicadeza - e há aí razões justas para aprovar um gosto e condenar outro. Mas, onde a há diversidade na concepção interna ou da posição externa que de nenhum modo é censurável em qualquer dos lados da disputa e que não deixa lugar a que se prefira um em detrimento do outro, nesse caso um certo grau de diversidade nos juízos é inevitável e será útil procurar um padrão pelo qual podemos reconciliar opiniões contrárias.

David Hume, Do Padrão do Gosto (1757)

Tradução de João Paulo Monteiro