quarta-feira, janeiro 17, 2018

Natureza e Ética



David Seymour, Nuremberga, 1947 "Crianças brincando na praia"



A Natureza, Sr Allnut, é aquilo que viemos a este mundo para ultrapassar"
Nature, Mr Allnut, is what we were put in the world to rise above.

Frase de Katherine Hepburn para Humprey Bogart na Rainha Africana (1951)

(...) Como decidimos o que é certo ou errado, bom ou mau? Muitos filósofos avisaram-nos de que nenhum facto sobre a natureza pode fornecer alguma base para discutir valores. No Tratado sobre a Natureza Humana (1739/40), David Hume formula um convincente argumento sobre o fosso intransponível entre facto e valor, entre “é” e “deve”. Numa tentativa de ultrapassar esse fosso comete-se a chamada “falácia naturalista”: nenhum argumento com premissas factuais pode fornecer-nos qualquer conclusão sobre o que tem valor, ou sobre o que devemos fazer.

Na obra Principia Ethica (1903), o filósofo G. E. Moore aduziu o que ele chamou de “argumento de pergunta aberta" para uma restrição semelhante em qualquer discurso sobre o valor. Moore alega que qualquer tentativa para definir “bom” em termos naturalistas – tal como prazer, utilidade, ou, como um mandamento divino – tem de falhar, porque permanece sempre a questão em aberto se o prazer, ou a utilidade ou aquele particular mandamento divino, são realmente bons. Se essa definição naturalista fosse boa, como a definição de triângulo enquanto uma figura plana com três ângulos, então a questão “É o triângulo realmente uma figura com três lados?”, não faria sentido, o que apenas assinala o falhanço da definição de “bom”. A formulação de Moore deu origem a um enorme debate. É razoável objetar que ficou por formular a seguinte questão: se uma dessas definições estiver correta então já esta questão não está em aberto. Mas teremos que admitir que nenhuma definição de “bom” em termos de propriedades naturais é muito plausível. O fosso original “é- deves” de Hume permanece.

Na prática é claro que seria impossível decidir o que é melhor sem referências a factos. Em medicina como nas políticas públicas, as decisões “baseadas em evidências” são os padrões por excelência a que até os políticos aspiram. Mas a evidência que esperamos só é relevante porque certos objetivos são considerados inquestionáveis: saúde, felicidade, vida. Estes são os valores que pressupomos mesmo que pareçam demasiado óbvios para serem articulados em qualquer argumento prático ou moral. Se o dinheiro compra a felicidade, então esforça-te para fazer dinheiro. Mas apenas se a felicidade for o tipo de coisas que deves perseguir. Se a comida sustém a vida, então come! Mas apenas se valorizas a vida.

Então onde poderemos encontrar a justificação das premissas gerais sobre os valores? Se ir dos factos para os valores é uma falácia, então não poderemos fundamentar os juízos de valor nos factos. Mas se não nos factos, então em quê? Não-factos? “Factos alternativos”, talvez? Um tipo de verdades que se distinguem dos factos vulgares da experiência são os factos lógicos. E alguns filósofos, nomeadamente, Immanuel Kant, no século XVIII, pensava que podemos extrair os princípios morais puramente da razão. Isto parece reduzir a imoralidade a um mero erro lógico matemático. E, face a isto, parece absurdo, apesar dos sucessivos esforços dos seguidores de Kant, para considerar que o absurdo só o é porque não somos espertos o suficiente para o compreender. Há muito tempo que este tem sido o estratagema de filósofos e teólogos: se discordares do seu dogma então deves ser estúpido ou fraco. Prefiro continuar a pensar que não percebo.

Então devemos admitir que tudo o que diz respeito a valores, bondade ou correção é arbitrário? Não. (...)

Uma proposta de resposta é aquela que aponta para considerarmos as nossas vontades e desejos face ao valor. Querer qualquer coisa tem implícito que vejamos isso que queremos como valoroso. O nosso desejo é um facto sobre nós, mas parece apontar para um valor. Cuidamos do que desejamos, e, por  definição, aquilo que cuidamos é o que valorizamos. Stuart Mill adota esta estratégia quando declara no Utilitarismo (1863) “a única evidência sobre o facto de algo ser desejável é porque alguém realmente o deseja.” Por tal, Mill foi acusado de cometer uma falácia naturalista por se ter equivocado em relação ao significado de “desejável”. Significa “o que merece ser desejado” ou “o que é capaz de ser desejado”? O facto de uma coisa ser desejada prova que ela pode sê-lo; mas não prova que deva ser desejada. Pois nem sempre o que desejamos merece ser desejado.

(...) Mas como poderemos saber qual dos nossos desejos devemos aprovar?

Uma abordagem outrora apreciada apela para ideia de que os nossos desejos são dignos desde que provenham da nossa autêntica natureza humana. Daoistas, Epicuristas e Aristotélicos, entre outros dignatários da antiga sabedoria sempre nos incentivaram a seguir a natureza. Mas o que quer isso dizer?

(...) O que a biologia nos ensina acerca da natureza humana é que, em sentido realista, não há tal coisa como a natureza humana. A única atitude coerente que podemos ter perante esse facto é a existencialista; se há algum ensinamento que podemos encontrar na natureza é a de que nada aí existe que possamos seguir. Logo, só podemos aspirar a criá-lo.”

Ronnie de Sousa "Nascemos existencialistas" in AEON,  Ver artigo completo AQUI 

Tradução de Helena Serrão

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