sexta-feira, março 16, 2018

Como há uma ténue linha entre a civilidade e a barbária.

Foto de Robert Capa

A guerra, em que não queríamos acreditar, estalou e trouxe consigo a decepção. Não só é mais sangrenta e mais mortífera do que todas as guerras passadas, por causa do aperfeiçoamento das armas de ataque e de defesa, mas, pelo menos, tão cruel, exasperada e brutal como qualquer uma delas. Infringe todas as restrições a que os povos se obrigaram em tempos de paz – o chamado Direito Internacional – não reconhece nem os privilégios do ferido e do médico, nem a diferença entre o núcleo combatente e o pacífico da população, e viola o direito de propriedade. Derruba, com cega cólera, tudo o que lhe aparece pela frente, como se depois dela já não houvesse de existir nenhum futuro e nenhuma paz entre os homens. Desfaz todos os laços da solidariedade entre os povos combatentes e ameaça deixar atrás de si uma exasperação que, durante longo tempo, impossibilitará o reatamento de tais laços. Tornou também patente o fenómeno, dificilmente concebível, de que os povos civilizados se conhecem e compreendem entre si tão pouco que podem virar-se, cheios de ódio e de repulsa, uns contra os outros. Quando falo do desapontamento, já todos sabem a que me refiro. Não é necessário ser um fanático da compaixão; pode muito bem reconhecer-se a necessidade biológica e psicológica do sofrimento para a economia da vida humana e, no entanto, condenar a guerra nos seus meios e objectivos, suspirar pela sua cessação. Afirmou-se, sem dúvida, que as guerras não poderão terminar enquanto os povos viverem em tão diversas condições de existência, enquanto as valorações da vida individual diferirem tanto entre uns e outros e os ódios, que os separam, representarem forças instintivas anímicas tão poderosas. Estava-se, pois, preparado para que a humanidade se visse ainda, por muito tempo, enredada em guerras entre os povos primitivos e os civilizados, entre as raças humanas diferenciadas pela cor da pele e, inclusive, entre os povos menos evoluídos ou incultos da Europa. Mas das grandes nações da raça branca, dominadoras do mundo, às quais coube a direcção da humanidade, que se sabia estarem ocupadas com os interesses mundiais, e cujas criações são os progressos técnicos no domínio da natureza e os valores culturais, artísticos e científicos; destes povos esperava-se que saberiam resolver de outro modo as suas discórdias e os seus conflitos de interesses. Dentro de cada uma dessas nações tinham-se prescrito ao indivíduo elevadas normas morais, às quais devia ajustar a sua conduta, se pretendesse participar na comunidade cultural. Estes preceitos, muitas vezes rigorosíssimos, exigiam muito dele: uma ampla auto-limitação e uma acentuada renúncia à satisfação das pulsões. Estava-lhe sobretudo proibido servir-se das extraordinárias vantagens que o uso da mentira e do engano proporcionam na luta com os outros homens. O Estado civilizado considerava estas normas morais como o fundamento da sua existência, saía abertamente em sua defesa se alguém ousava infringi-las e, inclusive, declarava como impraticável a sua sujeição ao exame do entendimento crítico. Era, pois, de supor que ele próprio quisesse respeitá-las e que não pensasse empreender contra elas algo que constituísse uma negação dos fundamentos da sua própria existência. Por último, pôde observar-se como dentro das nações civilizadas se encontravam inseridos certos restos de povos que eram em geral incómodos e que, por isso, só com relutância e com limitações eram admitidos a participar na obra comum da cultura, para a qual se tinham revelado suficientemente aptos. Mas era de crer que os grandes povos tivessem alcançado uma tão grande compreensão dos seus elementos comuns e tanta tolerância em face das suas diferenças que não confundissem num só, como na antiguidade clássica, os conceitos de “estrangeiro” e de “inimigo”. Confiando neste acordo dos povos civilizados, inumeráveis homens trocaram a sua residência na pátria pelo domicílio no estrangeiro e associaram a sua existência às relações comerciais entre os povos amigos. Mas aquele a quem a necessidade de vida não encadeava constantemente ao mesmo lugar podia formar para si, com todas as vantagens e todos os atractivos dos países civilizados, uma nova pátria maior em que ele se comprazia sem obstáculo e sem suspeitas. Saboreava assim o mar azul e cinzento, a beleza das montanhas nevadas e dos verdes prados, o encanto dos bosques do Norte e a magnificência da vegetação meridional, a atmosfera das paisagens sobre as quais pairam grandes recordações históricas, e a serenidade da natureza intacta. Esta nova pátria era também para ele um museu repleto de todos os tesouros que os artistas da humanidade civilizada tinham, há muitos séculos, criado e legado. Ao deambular neste museu de sala em sala, pude comprovar imparcialmente quão diversos eram os tipos de perfeição que, entre os outros compatriotas seus, tinham sido criados pela mistura de sangues, pela história e pela peculiaridade da mãe Terra.(...)


Sigmund Freud, Escritos sobre a  guerra e a Morte, p7 e 8,Lusosofia, Covilhã.
Tradução Artur Morão

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